O ZECA, O VIRUS E A LIBERDADE
Corremos todos contra o tempo. Aprisionados.
Muitos de nós, professores, na longínqua adolescência, ainda sentimos o cheiro do medo, o medo dos fortes, dos inquestionáveis, dos escolhidos. Numa época em que a maioria se sentia pequeno e sem possibilidade de ser maior. Depois surgiu um tempo novo, o tempo da esperança e experimentámos o fulgor desse novo horizonte em sonhos partilhados e em lutas ganhas. Uma geração que hoje também comunga temores e ameaças de outra índole, mas com a mesma fome em encontrar de novo o futuro e a esperança.
A vida do mundo tem ciclos e reviravoltas. Nada está adquirido para sempre. Aquilo que é hoje fundamental exige de todos uma luta constante para não soçobrar. E há muito a fazer quando os mais fortes nos querem impor limites à imaginação, à criação do futuro, ao tamanho da alegria.
Foi o que aconteceu em 2020. Sem pré-aviso, algo chegou e engoliu por inteiro o Planeta e atacou na sombra e sem pré-avisos, porque é cobarde e agride os mais fracos. Uma boa alegoria para todos os poderes que na obscuridade nos querem instrumentalizar, manipular e derrotar. E facilmente muitos de nós caíram na indiferença. O vírus é isto mesmo. A força que nos verga, que nos confina em nós mesmos, que nos impede de ir ao encontro dos outros, de amar, de viajar, construir, partilhar. O vírus é tudo o que nos faz recusar o abraço, a partilha da alegria e nos obriga a confinamentos, a máscaras, a prisões domiciliárias. E tudo aceitámos para não perdemos algo valioso que nos resta. O valor da vida que se sobrepõe à vontade da libertação.
O ano 2020 foi assim um ensinamento, uma metáfora, uma preparação do espírito para nos precavermos contra cenários totalitários de um mundo em transformação profunda, ao nível económico, político e tecnológico. Aqueles que tiveram a sorte de ter já nascido em liberdade percebem melhor hoje tudo o que podem perder. Independente das razões, a experiência dá-nos a força e a urgência em lutar contra qualquer forma de totalitarismo.
No final, iremos celebrar com entusiasmo a liberdade após estes meses de obscuridade. Daremos mais valor à leveza dos passos, aos horizontes sem sombras, ao pensamento tão imenso e livre como o mundo, à beleza da criação artística. Nunca mais cederemos à tentação do muro e da fronteira. Percebemos agora que a liberdade é muito mais do que um voto ou a possibilidade de dizer mal ou a escolha de uma vida em vez de outra. A liberdade é a essência de nós mesmos, o que nos ilumina o rosto quando pressentimos que o caminho que trilhamos foi imaginado por cada um de nós.
E responder em liberdade ao futuro é também acolher e defender os valores ecológicos, os valores multiculturais, os valores democráticos e da tolerância, os valores de uma autonomia do pensamento que recusa amarras tecnológicas e ideologias autoritárias.
É esse mundo da liberdade que hoje celebramos ao evocarmos a figura de Zeca Afonso. Um homem sem medo e sem amarras. Um homem que entoou a partilha dos ideais com os outros, em traz outro amigo também ou venham mais cinco, que enalteceu os valores da ecologia nos verdes são os campos, mas também o olhar melancólico da menina dos olhos tristes, a tragédia na morte saiu à rua num dia assim ou o desamparo do menino do bairro negro. Cenas e retratos de tempos distintos, mas que nos empurram para a fronteira, para distância com os outros, para longe da serra da mata, da beira do mar, das margens do rio e das altas fragas da serra.
Mas um dia, sabemos que um dia, voltaremos. Seremos todos os índios da meia praia e seja bem-vindo quem vier por bem.
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