Desencontro

 


Encontro-me numa fase da vida em que sentir-me cómodo com os outros se transforma quase numa obsessão. Prefiro a solidão do que o esforço em contribuir apenas para que o grupo se mantenha unido noite dentro. O mesmo se passa com as palavras. Quando converso só o faço se encontrar nos outros a comodidade em me ouvir. Não o fazer de conta, não o elogio fácil e fugaz mas o aconchego, do sorriso, do olhar atento e vibrante do toque no braço que remete sempre para o coração. Nesta idade funcionamos melhor se além do cuidado em ouvir-nos, a educação que nos convida a dizer, a atitude que nos incentiva a continuar, o reconhecimento implícito de que não é neutro o que se diz, não escusado, eficaz. 

Prefiro quase sempre o silêncio, claro. Prefiro guardar as palavras como reserva bancária para tempos medonhos que aí vêm. Prefiro nada ter para dizer do que ter que dizer para que o silêncio não se imponha. Facas aguçadas entre pessoas que se desconhecem e têm que continuar unidos por palavras difíceis de encontrar. E o tempo esvai-se devagarinho porque é medido por letras e sons que esmurram as paredes.

E chego a casa e às vezes não me apetece falar. Apetece-me ouvir ou apenas olhar. Acho que falamos demasiado. Sempre. Apesar da vida estar mais que feita, apesar de nada haver de novo em nenhum de nós, preferimos sempre testar os outros para concluir que tudo está tudo de acordo com a expectativa, porque isso acalma-nos, isso responde às necessidades básicas de segurança e conforto. Não queremos novidades, queremos a confirmação, queremos saber se os outros continuam firmes nos propósitos, se ainda não esqueceram o essencial, se comungam dos planos traçados ao pormenor. 

É isso não é?

E ela emudeceu e baixou o olhar para o prato. Distraidamente mexia com o garfo nas ervilhas que rolavam no prato à medida dos solavancos. E não esclareceu a sua atitude mesmo quando se fez um silêncio que permitia ouvir o trabalhar do frigorífico e da lâmpada florescente no teto da cozinha. Está tudo bem, Laura? E uma lágrima saltou do olho como num golpe de magia e ela levantou-se arrastando a cadeira e correu para corredor como se tivesse vergonha de qualquer coisa. Ele não se levantou e preferiu esperá-la no mesmo sítio e na mesma posição para depois recomeçar a vida no sítio exato onde ela terminara. Ao fim daqueles anos todos de vida em comum ele sabia o peso de uma lágrima, sabia a dor subjacente ao arrastar de uma cadeira e de uma fuga para o lado escuro da casa. Aprendeu a não sair do lugar e a esperar – demorasse o tempo que demorasse – o regresso lento e silencioso dela. Altos e baixos de uma relação que ele aprendera a viver já sem o desespero dos primeiros sinais de desencanto dela. Até onde a sua culpa se estendia, até onde as ambições de vidas alternativas dela se sobrepunham à continuidade do projeto. Nada aliciante, nada de euforias, mas sereno e capaz dos proteger do frio e da maldade. Pensava ele, claro. Gostava dela, mas gostava mais ainda daquela ideia de família que os protegia do mundo. Daquele conforto de nada ter que procurar porque o essencial estava dentro de portas. Saber o que tinham que fazer aos sábados e domingos e à noite quando chegavam cansados da repartição de finanças onde se conheceram há cerca de vinte anos.

Não era bem amor, ele sentia isso. Era uma espécie de clube indestrutível que dava o corpo às balas, uma espécie de barreira contra o mal e contra solidão da procura. O amor talvez não passasse de uma desculpa para que duas pessoas se juntassem e caminhassem juntos. O amor só por si não justifica partilha de vida mas poderá ser a justificação para se iniciar. Aconteceu com eles, acontecerá com todos. O resto é resiliência, é enfado, é bom senso. Não sabia, mas ele julgara sempre que os fins justificam os meios e o dramatismo da vida exigia que cada pessoa só resistiria à sua dureza se dividisse com outras os custos e os dissabores. E quando Laura chegou, agora apenas com os sulcos na face bem evidentes, manteve a postura e o olhar e esperou pelo resumo daquilo que ela tinha pensado, reescrito enquanto as lágrimas surgiam. E ela sem se sentar e sem qualquer jogo de corpo lhe disse que tinha sido a última tentativa e que o caminho era sem regresso. Compreendia as razões dele de manter as relações afetivas porque eram sempre a forma de lutar contra o frio, mas ela arriscava a solidão se não encontrasse alguém que a elevasse a patamares mais elevados da vida que segundo ela eram os estados de paixão. No fundo, com a crítica velada na voz cínica, ele não precisava dela, mas apenas precisava de alguém que falasse com ele após o telejornal da noite. O sexo era apenas uma forma de expulsar o medo da morte e as viagens uma espécie de roteiro nostálgico para contar aos amigos e para preencher o tempo morto das férias. Achou injusta a análise mas manteve o silêncio e o olhar que fixava a luz vermelha do relógio do fogão. E ela acusou-o de falta de escrúpulos porque sem qualquer culpa instrumentalizava-a colocando-a à sua necessidade de sobrevivência, enquanto ela buscava um vida plena em que duas pessoas se encontrariam não para sobreviver mas para criar uma nova vida, sem regras nem ameias.

E ele não respondeu, primeiro porque não tinha nada para dizer e depois porque contrariá-la naquele momento poderia extremar a posição dela e complicar ainda mais o que era evidente. Lá bem no fundo sempre julgou que ela no dia seguinte acordasse com a vontade de continuar porque tudo o que teria de resolver no sentido mais prático seria a melhor forma de dissuasão da ruptura. Mas quando se levantou não a viu e grande parte da sua roupa tinha desaparecido e não encontrou em lado nenhum qualquer bilhete de despedida nem carta de últimas vontades. Esperou um telefonema depois, mas horas passadas concluiu que a sua vida ganhara matizes e cores que exigiam da sua parte adaptações.

 

Luís R

 

 

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