A CHUVA E O SONO
Mas adoro a chuva. Nas minhas insónias
fantasio dormências em autocaravanas, perdidas entre as árvores e balanceado
pelo som da água que escorre em abundância. É a melhor estratégia para
adormecer. No passado chovia mais e na minha adolescência - que demorou uma
eternidade - a chuva caía com tanta frequência que a memória está repleta de
manhãs que escureciam sob aguaceiros monumentais e que me aconchegavam aos
cobertores quentes. Apesar de ter amigos, companheiros de brincadeiras, julgo
que a solidão é sempre a marca de nós mesmos e esse sentimento é ainda mais
avassalador na juventude. Os amigos ajudam-nos a andar, mas o caminho é sempre
feito isoladamente a enfrentar os estorvos, os perigos e as provocações. E a
chuva acentuava a solidão.
Obrigava-nos a um recolhimento
forçado. Eram dias mais silenciosos, apenas se ouvia o barulho da água que
escorria pelas caleiras. As conversas na família eram reduzidas ao mínimo,
parecia que a chuva fazia emudecer as pessoas, refreava entusiasmos e delírios.
Era como se algo de importante se passasse lá fora, fruto de reminiscências
ancestrais de dilúvios que limparam a Terra dos ímpios e da sujidade acumulada
nas memórias dos homens. E quando a força do vento empurrava a água frente às
telhas então uns sons secos de pingas batiam no teto de madeira e corríamos com
baldes e tachos para acomodar a água que sorrateiramente se insinuava. Gestos,
traços, ritmos sempre ao sabor da água que envolvia tudo.
Agora quase não chove. Talvez,
por isso, o meu sono é cada vez menos profundo. Acredito que a minha leveza ou
dramatismo, a ansiedade ou a serenidade perante a vida é proporcional à água
que cai do céu. A água que nos remete para aquela zona mais íntima de nós onde
construímos a nossa identidade nas águas maternais, umbilicais, quentes e
nutritivas. Uma espécie de casulo de segurança e mimo absoluto, onde nadámos
sem qualquer angústia, sem nos preocuparmos com a possibilidade de encalhar em
ilhas desabitadas porque já tínhamos tudo o que nos fazia falta. Mas contra nossa
vontade fomos expulsos do paraíso com a aflição de ter de perder o melhor de
nós…
Por notícias de jornais da semana
passada, soubemos que engenheiros do clima profetizaram que poderá haver num
futuro próximo um cenário apocalíptico de uma Península Ibérica a ferver,
desértica e de cor castanho amarelo torrado. O que vale é que a encenação se
estende para o fim deste século e já não estou cá. Pois, como é que iria
dormir?
Luís R
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