O ENCONTRO
Ligou-se à vida no dia em que a
história começou. Não sabia o que era viver porque os dias e as estações do ano
seguiam o seu rumo sem o questionar. Reparava no sol tardio e nas nuvens
brancas no céu azul, mas não encontrava na sua beleza mais do que a simples
ilusão do infinito. Sentia-se colocado no mundo como uma encomenda num armazém,
alinhado com as outras nas prateleiras, protegido da chuva e do vento,
imóvel na maioria das vezes.
Era uma manhã igual a tantas outras,
com os rituais mecânicos de início de dia, apenas um vento gelado assaltou-o
quando saiu para a rua e compôs um andar mais apressado para que o movimento o
fizesse esquecer o desconforto do frio. Ao entrar no escritório viu-a sentada e
perdida em pensamentos, logo na primeira cadeira da sala de espera.
- Bom dia, está à espera de alguém? –
perguntou.
- Sim, bom dia. Estava à sua espera. E
levantou-se de imediato apresentando a sua mão estendida que ele envolveu na dele.
Era uma mão pequena e quente.
Olhou para ela surpreso. Nunca a tinha
visto e ela esperava-o. A convicção da sua voz não permitia qualquer dúvida.
Tinha um cabelo preto, luzidio, uma face redonda e um nariz arrebitado que lhe
dava um aspeto divertido. Mas parecia triste ao mesmo tempo. Encaminhou-a com
um gesto para o interior do escritório e indicou-lhe uma cadeira. Sentou-se à
sua frente e esperou razões para a sua presença.
- Alguém que o conhece falou-me de si.
Do seu andar errante, da sua situação de homem só que não procura ninguém. Não
sabe se por timidez se por vocação. Disse-me que é boa pessoa, prestável e
amável. Fiquei curiosa, só isso.
- Mas quem foi que lhe falou de mim? –
Perguntou com um tom acusatório que queria esbater.
- Não posso dizer-lhe. Pediu-me
reserva sobre isso. – Pressentiu um sorriso tímido nos lábios. Mas eu não quero
que me julgue já. Não sou uma mulher aventureira, não sou frívola, apenas
alguém que ganhou coragem de perseguir uma ideia que se instalou após uma
conversa com um amigo comum. Não quero absolutamente nada, nada mais do que
conversar.
- Mas espere. Alguém que me quer
salvar? Alguém que julga que a minha situação é devida à falta de jeito, ou
ausência de capacidades de sedução, ou perturbações mentais que não me permitem
resolver problemas de solidão crónica? – naquela voz meio cínica e meio
assustada. Fitou-a.
Ela levantou-se, estendeu a mão,
compôs com um gesto o cabelo e desculpou-se.
- Reparo na sua voz meio melindrada
que julga um descaramento da minha parte ter vindo. Tem razão, talvez tivesse
sido uma opção arriscada. Não era minha intenção ofendê-lo. Esqueça o que se
passou. Desculpe, mas apenas queria encontrar alguém que me fizesse lembrar que
a vida, por vezes, não se resolve sozinha e precisa de mecanismos tipo deus ex-maquina
dos gregos. E eu falo por mim, não por si. Desculpe mais uma vez. Adeus.
E saiu sem lhe dar oportunidade de
alterar tom de voz ou encontrar uma solução mais confortável para ambos. A necessidade
dele em mostrar caráter, ela de se desculpar pelo atrevimento.
Nada fez nesse dia, sempre a tentar
encontrar explicações para o acontecido. Que amigo comum teria tido a ideia, o
que lhe teria dito para tornar possível aquele encontro? Era uma mulher
interessante, misteriosa e sem aparência de pessoa fácil. No seu grupo diminuto
de amigos não encontrava ninguém de tal confiança e intimidade que tornasse o
encontro possível.
Á noite a face dela povoaram-lhe
sonhos e desejos. Não conseguiu dormir tentando encontrar explicações, mas as
que encontrou não tinham pés nem cabeça.
Lembrou-se da irmã, mas não a julgava capaz de o dar como um homem
desesperado em encontrar companhia. Os colegas do escritório não faziam ideia de
quem ele era e nas outras relações que esporadicamente se desenrolavam em
épocas festivas, não conseguiu encontrar ninguém com propósitos de lhe dar um
rumo à sua vida.
E o tempo foi passando e os dias mais
curtos devido ao Inverno cada vez mais agreste. Nos intervalos e após o dia de
trabalho a sua cabeça envolvia-se com a mulher de cabelos pretos, com paradeiro
desconhecido, sem um nome e sem possibilidade de revisitar. Culpava-se de ter
sido quase insolente na sua voz quando a questionou sobre a insolência de o
querer curar sem ele ter pedido ajuda nem a ela nem a ninguém.
E as chuvas e o frio amontoaram-se até
à náusea naquele inverno longo e rigoroso. A face da mulher desconhecida aos
poucos foi-se dissipando, tal como neve derretida à beira da estrada. As noites
voltaram a ser calmas com leituras e alguma série americana. Apesar de algum
desconsolo pelo silêncio, julgava-se tipo com sorte pela situação financeira
confortável, uma casa cheia de livros e sem mazelas físicas por aí além. Mas
numa noite o telefone tocou, algo pouco frequente, exceto as chamadas semanais
da irmã que demoravam pouco porque as mesmas perguntas tinham respostas
idênticas das semanas anteriores. E ao levantar o auscultador identificou logo
a voz dela na saudação, pela melancolia e pelo tom como soletrasse as letras:
- Olá, não sabia como procurá-la,
desculpou-se.
- Eu sei, não levei a mal o seu silêncio,
riu-se ela num murmúrio.
- Também nunca descobri o nosso amigo
comum! – exclamou deixando na voz desconforto.
- Claro, era uma adivinha muito
difícil! – exclamou.
- E presumo que não me vai dizer…
- Tem razão, prometi manter isso
reservado. Poderia ficar melindrado com ele por se meter na sua vida.
- Neste caso, talvez lhe agradecesse!
– Colocou uma voz amável para lhe fazer sentir que não havia qualquer crítica
pelo novo contacto.
- Ainda bem, caso contrário teria de
desligar a chamada. - respondeu ela determinada.
- Não o faça, peço-lhe. Tive muito
tempo para pensar em tudo o que aconteceu e não queria passar pelo mesmo.
Senti-me culpado muitas vezes por não lhe ter agradecido ter aparecido na minha
vida. Não tive tempo, mas tive o suficiente.
-
Não se culpe, eu também não estava segura. O meu afastamento tempestuoso também
foi devido a suspeitas fundadas que teria sido um ímpeto pouco sensato da minha
parte.
-
E que tal recomeçarmos? Sou o Luís, trinta e um anos, sem qualquer talento especial,
formado em direito mas odeio ser jurista, tenho um emprego bem pago, mas
sinto-me melhor em casa. Gosto de chuva, gosto de ler e de dormir. Não me
lembro de outro pormenor interessante da minha vida! – e riu-se. Desculpe se estava à espera de uma pessoa mais interessante para amigo.
-
Não estou surpreendida, acredite. Conheço-o bastante bem. – e sorriu de forma
audível. - E eu sou a Luísa, divorciada, professora e aprendi a ser
reservada e a dar valor à solidão. Também não me sinto talentosa em área
alguma. E se durante muito tempo julguei o facto uma falha pessoal hoje resolvo
com alguma serenidade porque me permite manter a curiosidade por muitos
territórios. Não me foco, disperso-me. E, no fundo, isso permite-me uma
imensidade de interesses.
-
Concordo consigo. Mas ter um talento também resolve o sentido que procuramos.
Ser excelente nalguma coisa é parte do caminho que teremos de percorrer.
Garante-nos um lugar nos vivos e não na corrente. Permite-nos a diferença que
eu não encontro. Percebe?
-
Percebo, mas a vida talvez não precise de sinaléticas, mas apenas cumprir o
essencial. Sentir-se vivo, acho eu. E não é simples a tarefa, não sei se
concorda. – e ouviu-se do lado de lá um esgar melancólico.
-
Mas permita-me que lhe faça uma pergunta mais pessoal…
-
Faça, logo vejo se dá para responder!
-
E como é que uma mulher bonita como você, está a falar á meia noite com um tipo
sem nenhum talento especial e que se considera um chato?
-
Não diga isso. Nesse caso não falaríamos com ninguém! – Falo consigo porque
acredito que possa valer a pena. E já valeu, sou sincera.
-
Ainda bem! Mas então acha que valerá a pena um encontro? Julga que tem pernas
para andar a nossa amizade?
-
Acho que sim, sou sincera. Mas vou pensar e depois digo-lhe.
-
Pelos vistos não me vai dar o seu contacto – diz-lhe ele com o tom de voz o
mais triste que conseguiu compôr.
-
Não! Não me leve a mal, preciso de ter a certeza se a vontade de me esconder de
si na primeira vez não se repete agora.
-
Tudo bem, eu espero o seu retorno.
-
E se eu não voltar?
-
Valeu a pena também. Viverei à sombra do seu regresso. Chegou à minha beira sem
qualquer esforço da minha parte. Estou a ganhar. Se me disser onde procurá-la,
aí sim fica o facto na minha responsabilidade. E ficaremos empatados.
-
Não, prefiro ser eu a mandar. – Voz firme dela, sem mancha de dúvida.
-
Mas eu posso pensar que tem impedimentos pessoais fortes, que é casada, que é
um jogo seu, que é um desafio que faz com regularidade sobre homens sós, que é
um desafio colocado por alguém conhecido. Isso deixa-me vulnerável.
-
Sim, poderá pensar nisso tudo, e até pode ter razão. Ou então pensar que não há
jogo nenhum e sou apenas alguém que quer partilhar afetos.
-
Ok, vou pensar o melhor de si. É a Luísa, não é?
-
Sim sou a Luísa. Adeus.
-
Adeus.
E
lá fora a chuva caía como no princípio do mundo e batia nos vidros com
estrondo. O horizonte encharcado e em casa uma humidade que se pegava às roupas
como uma praga. Não adormeceu porque a vida já não existia em casa e queria
regressar à cidade. Poderia ser que a encontrasse numa boca de metro ou num
café.
Talvez
queiram saber como acabou esta história. O facto é que até agora ela nunca mais
ligou, nem ele nunca soube quem ela era. Possivelmente, cruzaram-se muitas
vezes, mas não a reconheceu. Talvez fosse sua vizinha e o espreitasse de uma
janela dos prédios em frente. Talvez tivesse um casamento, filhos e vida. Mas o
facto insólito fê-lo respirar e empurrou-o para a vida tal como uma folha
amarela torrada de um plátano puxada ao vento.
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