O SOL E A SOMBRA
Sempre tão perto como se fizesses
parte da mobília. Eras tu e nós. Um "tu" tão grande que nós tínhamos
dificuldade em encontrar um recanto para nos sentarmos. Um local onde nos fosse
permitido esquecermo-nos de ti.
Podias ter ido embora e não foste,
por medo e por vergonha. O que pensavam os outros foi sempre sobrevalorizado na
tua vida. As vezes não te perdoava a cobardia porque ao ficares também sobressaíam
as mágoas colhidas ao longo dos anos. Devias ter partido enquanto foi tempo. Um
tempo frio, escuro como o breu, onde todos nós andávamos perdidos, cada um com as
suas angústias. Crescidos, com pernas para andar e a maturidade construída tijolo
a tijolo como uma casa de emigrantes. E eu com tanta urgência de vida que
qualquer entusiasmo o escrevia em cadernos que levava para todo o lado.
Eras tu o motor da carruagem. Gerias
o nosso mundo interior mesmo quando o exterior de nós simbolizava indiferença. Foi
por isso que deixei de ser teu filho aos vinte e seis anos e coloquei em mim o
encargo de ser outra coisa. Um pai presente para que não ficasses abandonado
aos teus instintos suicidas.
Cuidei de ti por teres ficado. Por
isso, queria tanto que fosses. Mas quando julgamos que a causa da infelicidade
é alguém ou um lugar, depois de partirmos para longe de um ou de outro percebemos
que a infelicidade está em nós e nos vai corroendo como traças. Depois o
desespero é bem maior porque ficamos sem horizontes e sem ponta por onde se
pegue. Aconteceu contigo, aconteceu comigo. Por isso o teu afastamento durou
tão pouco e mesmo assim causou mais distúrbios do que se tivesses ido de vez.
Podias ter dado quatro voltas ao
mundo, tinhas meios para o fazer, mas os pequenos trajetos que fizeste foi
comigo. As tuas ambições encaixavam nas minhas, esperavas sempre que eu te
tirasse da mesquinhez de horizontes, da mediocridade das soluções. Mas eu nem
para mim tinha soluções e tinha idade para receber conselhos em vez de
encargos. Conselhos não me podias dar porque andavas embaraçado em dúvidas e
desalento. Os encargos eram inerentes à tua fragilidade e ânsia de sentido.
Setembro chegou depois de um agosto
com muitas queixas. Desvalorizei-as julgando que eram apenas o reflexo que as férias
dos outros te causavam. Uma má disposição levou-te ao hospital e contra
qualquer diagnóstico razoável a médica comunicou, com algum embaraço, que era
demasiado grave para se ter esperança. Foi
um choque porque sempre te olhei como alguém mais novo do que eu, mais forte e
capaz de resistires a qualquer tempestade. E ao regressar ao quarto, depois de
uma semana à espera, já tinhas morrido. Só, como tu sempre temeste. Esperaste
que eu saísse para, sorrateiramente, abandonares o corpo. Não te culpei porque
julgo que me querias defender dessa visão, dessa perda. Chorei, claro, mas sem
que ninguém soubesse, fiquei feliz por ti. Era tempo de ganhares a tua paz, a
tua liberdade. A serenidade. Em mim senti o ar fresco de quem não tem já
responsabilidades para com um filho mais velho.
Mas a melancolia é uma herança e não
uma escolha e alguma ficou pela tua partida. E hoje continuo à espreita, alguns
anos passados. Há manhãs em que acordo e penso naquilo que tu queres, nos passos
que tenho de dar, opções que tome em relação a ti. Que te vá buscar onde estás
e te embale naquele teu jeito de nada dizeres e de não quereres que eu diga.
Preferes apenas ver-me feliz e que te salve de ti mesmo.
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